O primeiro dia de palestras contou com apresentações culturais e intensos debates sobre a presença de negros no Poder Judiciário brasileiro.
O I Encontro de Negras e Negros da Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário nos Estados (Fenajud) reuniu diversos advogados e especialistas em Direito para discutir o combate ao racismo e o fortalecimento do povo negro na sociedade e no judiciário brasileiro. O início do evento contou com a apresentação cultural da Companhia de Dança Afro Jingoma dya Muxima, resgatando a cultura africana e trazendo movimentos baseados na memória ancestral.
A primeira palestra, com o tema “Sob o machado de Xangô: Uma proposta ético-jurídica a partir da Ancestralidade e Orixalidade africanas”, contou com a participação do Advogado, Professor e Doutor em Difusão do Conhecimento, Sérgio São Bernardo; e da Advogada, Mestre em Direito Público, e Professora, Camila Garcez.
Para Camila Garcez, precisamos da luta para colocar pessoas pretas no Judiciário. “Hoje, apenas 20% dos juízes se declaram pretos e pardos. Precisamos ocupar o sistema. A mudança tem que começar nesse aspecto, há uma ausência de pessoas negras ocupando o Judiciário. O juiz André Luiz Nicolitt, negro, proferiu uma sentença de relaxamento da prisão de um violoncelista preso por reconhecimento fácil, citando um rap do Emicida e Djonga e falou que aquela prisão era arbitrária e racista. Essa sentença tomou o mundo, pois Nicolitt falou que o Judiciário é racista. É isso, é ocupar, fiscalizar e constranger”, afirmou Camila.
O professor e advogado Sérgio São Bernardo, abriu sua fala expressando a alegria em poder participar de um espaço que discuta a realidade do negro no Brasil. “Já milito há muitos anos, sou advogado, professor de filosofia do Direito, onde nós ensinamos um novo conhecimento, um conhecimento jurídico africano e é isso que quero apresentar para vocês. Essa possibilidade de um Direito de Base afro-brasileiro e africano no Brasil. Não adianta você pesquisar, escrever e estudar se você não consegue lutar com aqueles que fazem a justiça no Brasil, que são os servidores do Poder Judiciário, a magistratura, o sistema de Justiça como um todo”, declarou.
A professora, doutoranda em Educação, mulherista africana e idealizadora do Mawakana Experiências Educativas Afrocêntricas, Taísa Ferreira, abriu a palestra da segunda mesa, que abordou o tema “Africanizar o Cotidiano, construir pertencimento: A Justiça começa na Comunidade”, mediada por Keilla Reis, servidora da base do Sindicato dos Servidores do Judiciário do Estado de Pernambuco (Sindjud-PE).
Durante a fala, a professora Taísa falou sobre a construção de uma análise afrocêntrica no cotidiano de uma comunidade, e no cotidiano escolar para consolidação do conhecimento, trabalho que desenvolve com seus alunos, usando a centralidade e o ponto de partida para as pessoas pretas, nas suas histórias e culturas. Referente ao Poder Judiciário, Taísa destacou que é necessária uma mudança de cultura para resgatar a ancestralidade. “Para gente entender que justiça está além do ordenamento jurídico, e sim sobre o equilíbrio da vida. Dá para pensarmos em uma justiça muito mais ampla, uma justiça que começar por resgatar a memória do povo negro”, concluiu.
O advogado e panafricanista, Ulisses Passos, apresentou o tema Panafriscanismo, um movimento filosófico, político e social, que busca unir africanos e afro-diaspóricos, a partir de uma agenda centrada nos aspectos culturais, civilizacionais e políticos africanos.
Em sua fala, Ulisses abordou o Direito e a Filosofia Africana, que pouco ou quase nunca é abordada dentro dos cursos de Direito, e como foram os métodos africanos dos Povos Yorubá, Povos Luhya e Povos Akan. “O Panafricanismo busca promover as lideranças africanas e nossa autonomia, incentivando sua participação ativa e organizada nas lutas contra o modelo cultural genocida, buscando transformações sociais e políticas sistêmicas para promover a autonomia e a autopreservação do nosso povo negro frente à discriminação racial em todas as suas formas, incluindo a escassez de justiça econômica, igualdade de direitos e acesso a recursos”.
Lei de Cotas e a sua eficácia
A companheira Ellen Caroline, representando o Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina (SinjuSC) iniciou o debate da terceira mesa, abordando o tema “Ações afirmativas e Leis para proteger e trazer reparação histórica à população negra: Avanços e Ajustes Necessários”.
A promotora de Justiça, Livia Vaz, abriu o debate instigando os presentes sobre a real efetividade da Lei de Cotas e como ela é importante, porém, ainda está longe de ser a única medida de restituição para o povo negro no Brasil. “Negros e leprosos eram proibidos de frequentar as escolas, e em algumas províncias permitiam apenas que as meninas frequentassem escolas que ensinavam os afazeres domésticos. Segundo um estudo realizado pela OCDE, em 2018, intitulado ‘Elevador Social Quebrado’, precisamos de nove gerações para conseguir alcançar uma renda média, e isso não significa ficar rico, mas sim, ter algum mínimo de conforto. As cotas são sobre incrementar a presença negra nos espaços de poder e decisão, espaço esse que nos foi negado. Cotas raciais são sobre a presença mínima de ocupação em espaços de universidades, concursos públicos, no Judiciário, ela não é o suficiente, mas é necessária. Temos um longo caminho pela frente, pois não há democracia sem a efetiva participação do povo”.
Já Marlon Reis, advogado e secretário-geral da Comissão de Direitos Difusos e Coletivos do Conselho Federal da OAB e idealizador da Lei da Ficha Limpa, usou seu tempo para explicar a importância do uso prático das cotas. “Quando temos um Judiciário que é vergonhosamente branco é hora de pressionar as organizações, é preciso que outros institutos unam forças. Defender as ações afirmativas, como a Lei de Cotas, e ampliar sua atuação e defender a democracia, o direito à educação e a democratização de espaços que hoje são ocupados em sua maioria por brancos, como é o caso do Poder Judiciário”, observou Reis.
O primeiro dia de Encontro terminou com uma roda de conversa entre os participantes, mediada pelo coordenador-geral da Fenajud, Janivaldo Ribeiro, onde os participantes puderam falar de suas histórias de vida e suas experiências com a ancestralidade e com o racismo. Segundo Janivaldo, o espaço “foi destinado para que pudéssemos falar para nós, sem amarras, sem grilhões e principalmente, sem julgamentos. A liberdade de poder se abrir e fazer reflexões sobre a história do povo negro”, enfatizou.
Já Alexandre Santos, coordenador-geral da Federação, destacou que “havia muita expectativa da Fenajud pelo primeiro Encontro de Negras e Negros. Cumprimos bem nosso papel. O primeiro passo foi dado. Agora, aprofundaremos a discussão sobre o racismo estrutural e faremos o que tiver ao nosso alcance para tentar mudar essa realidade. A Fenajud entrou de vez na luta antirracista e o objetivo é transformar o judiciário, que é um reprodutor do racismo, em um ambiente inclusivo e comprometido com ações afirmativas”, salientou.