Outubro rosa: saúde das mulheres e direito ao autocuidado como política pública

Por Ana Carolina Lobo e Carolina Costa

Outubro Rosa é um movimento que acontece todo ano para conversar com as mulheres a respeito do câncer de mama e da importância do diagnóstico precoce da doença. Recomenda-se então às mulheres a partir de uma determinada faixa etária que realizem os exames anuais, especialmente a mamografia. A campanha, que é tão importante, pode ser olhada por duas perspectivas:

Primeiro, as mulheres, na sua vida cotidiana, têm dificuldade de cuidar de sua própria saúde, talvez porque sempre estão envolvidas com os cuidados da saúde de seus familiares. As mulheres são as principais responsáveis pelos cuidados de terceiros e já é sabido que quem cuida muito dos outros, cuida pouco de si. Por isso a necessidade de uma campanha tão grande para chamar a atenção das mulheres sobre o fato de que é fundamental cuidar de sua própria saúde.

O segundo ponto diz respeito ao acesso às ferramentas de diagnóstico, que estão disponíveis no SUS. Sim, o Sistema Único de Saúde, SUS. É só porque o diagnóstico do câncer de mama é oferecido pelo SUS como política pública de massa que as empresas privadas e as sociedades de medicina podem faturar em cima do Outubro Rosa como campanha e propaganda.

E a gente não está dizendo que as campanhas não são importantes. Elas são fundamentais. Vide as campanhas de vacinação também feitas pelo SUS. Mas você sabe qual campanha muito importante foi abandonada pelo Governo nos últimos anos? A campanha pelo uso do preservativo e pela redução de danos para combater a disseminação do vírus do HIV e de outras doenças sexualmente transmissíveis. Esta campanha tem um impacto bem importante na prevenção de um outro tipo de câncer que mata muitas mulheres, o câncer de colo de útero.

Vejam bem, ninguém está dizendo que a campanha pelo diagnóstico do câncer de mama não é importante. Sim, ela é muito importante, as mulheres têm o direito de ter acesso à diagnósticos e tratamentos de saúde. O fato é que ela tem elementos que marcam muito as questões de gênero. A cor rosa, a parte do corpo da mulher que é o seio que amamenta e está ligado a maternidade. Se fossemos falar em colo de útero, teríamos que pressupor, como de fato acontece, que mulheres transam. Vocês já viram em vitrines tecidos torcido e iluminação especial chamando atenção para o diagnóstico do câncer do colo de útero ou para conscientização do uso de preservativo feminino?

Ah, também se quiséssemos falar sobre saúde mental das mulheres teríamos que colocar em debate a exploração que a gente sofre cotidianamente. Bem, esses pontos já não são tão vendáveis, não são tão cor-de-rosa, não são tão românticos. A campanha do outubro rosa gera tanto engajamento porque ela é vendável. Se em seu germe ela foi pensada tendo como foco maior a saúde da mulher, hoje ela é disseminada por vários atores sem qualquer reflexão e sob a lógica maior do capitalismo.

Outro fator que é importante mencionar aqui se relaciona ao tabu que existe sobre o corpo das mulheres. Muitas de nós desconhecem o próprio corpo e seu funcionamento em suas especificidades, o que impede, inclusive, a identificação e o reconhecimento de  mudanças. Quantas mulheres costumam tocar com frequência os próprios seios e saberiam identificar se algo está diferente?  Quantas mulheres sabem identificar as alterações no funcionamento do corpo e do humor como um sinal de ausência de saúde e buscariam atendimento médico imediato? Estão vendo por que a educação sexual nas escolas, que também é política pública, faz tanta falta?

Alguém vai perguntar “vocês feministas inconformadas querem que a campanha acabe?” Não, são tão poucas as políticas públicas para as mulheres, nós é que não vamos destruir o mínimo que existe. Nós só queremos chamar atenção para o fato de que

1) o diagnóstico precoce do Câncer de Mama não é determinado por uma iluminação rosa em vitrine de shopping;

2) trata-se de uma política pública de Estado operacionalizada pelo Sistema de Saúde;

 3) o cuidado com a saúde das mulheres precisa avançar através de políticas públicas baseadas em um conceito de saúde mais ampliado.

A saúde na nossa sociedade tem sido compreendida por meio de uma lógica capitalista, que é entendida como a ausência de doença: se não estamos doentes, estamos bem. Mas a própria Organização Mundial de Saúde define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Caminhando em um sentido contrário àquele proposto pela Organização Mundial de Saúde, nós estamos olhando para a saúde das pessoas de forma fracionada – como se o corpo fosse a junção de setores independentes e sem qualquer conexão. Partindo deste entendimento, que reflexões podemos fazer acerca do Outubro Rosa e da saúde das mulheres?

Na nossa sociedade, especialmente no Brasil de hoje, ser mulher significa estar vulnerável a muitas coisas. Desemprego, insegurança alimentar, violência doméstica e sexual, sobrecarga. Diante disso, como falar de saúde das mulheres sem mencionar todos esses fatores que impedem um cuidado com a própria saúde? Pode parecer chocante, mas é como se dissessem: Vocês não devem morrer de câncer de mama, mas do resto podem morrer.

Enquanto mulheres, trabalhadoras, servidoras públicas, nós defendemos um conceito de saúde amplo, para nós, para nossos filhos, para nossos entes queridos. Um conceito de saúde que seja comunitário, ligado à dignidade do corpo. Um conceito de saúde que seja mais saúde e menos capitalismo.

Comments

comments