Por Carolina Rodrigues Costa
Coordenadora de Saúde e Previdência do Trabalhador FENAJUD – Secretária-Geral SINJUSC
Hoje pela manhã, enquanto eu me equilibrava entre tentar entrar em uma reunião virtual como coordenadora da FENAJUD, marcar algumas consultas médicas para minha mãe, pagar algumas contas já atrasadas e fazer contatos por whatsapp com companheiros da base do SINJUSC, um amigo me fez uma ligação. Atendi o telefone já querendo encurtar a conversa e perguntando o que ele queria.
— Oi, tudo bem? Diga.
Para minha surpresa, perguntou que mulher eu gostaria de ver homenageada nas camisetas do time de futebol de migrantes que apoio – se chama Pangeia. Depois me apressou dizendo que minha indicação tinha que ser feita naquela hora, imediatamente. Eu, com quatro demandas em execução, fora todas as outras do dia (inclusive escrever este texto), tive vontade de desligar o telefone. Um segundo depois, respirei fundo e tentei me concentrar na quinta tarefa: o nome de uma mulher admirável para homenagear. Num lampejo respondi:
— Dilma.
Ele, como um eco descrente, repetiu:
–Dilma?
Com a voz já um tom acima, confirmei minha resposta.
Sim, Dilma. Dilma que sofreu um golpe político que a impediu de exercer seu mandato como Presidenta, cargo para a qual foi legitimamente eleita. Dilma que foi acusada de crimes que até então não eram considerados crimes e que depois dela voltaram a não ser. Dilma que foi xingada, estampada em tanques de gasolina de pernas abertas. Dilma que passou por todo este processo de cabeça erguida e com uma dignidade que nenhum homem teria. Faço questão que seja Dilma.
Ele logo se convenceu pelos argumentos e pela minha voz pouco amigável. Pelo telefone não tinha como saber, mas minha cara também ficou péssima só de lembrar o que aconteceu com Dilma. Eu respeito muito aquela mulher.
O golpe de 2016 é, sem sombra de dúvidas, um dos piores episódios da nossa história como país, causou rompimentos civilizatórios que serão difíceis de superar, além de toda a crise econômica e social provocada pelo governo que se forjou a partir daquele processo. Mas, para além das questões políticas e sociais citadas, o impeachment de Dilma teve muitas outras implicações; escancarou a violência de gênero que ainda perdura no Brasil e mais especificamente a violência de gênero nos espaços políticos e de participação. Aqui quando falo em espaços políticos estou me referindo, além do exercício dos mandatos, as funções em cargos públicos, o espaço dos partidos, federações, sindicatos, associações, conselhos, e assim por diante.
Notem que muitos dos argumentos que costuraram a queda de Dilma tinham a ver com questões relacionadas ao seu gênero – ao fato de ser mulher. Todos eles usados para confirmar qualquer hipótese que defendesse que as mulheres não têm condição de participar dos espaços políticos. Dilma foi acusada de não ter maleabilidade, de não saber negociar, de ser uma mulher de poucas palavras. Estampou capas de revistas com manchetes que a pintavam como uma pessoa feroz, dada a arroubos, gritos, destemperos – em suma, uma mulher desequilibrada.
E quanto mais Dilma se mantinha firme em sua postura, permanecia altiva, mais a violência escalava degraus, até alcançar formas físicas. Não, ninguém chegou a bater ou violentar fisicamente Dilma, mas fizeram questão de usar todos os signos para representar as violências físicas que ela já tinha vivido e simular tantas outras pelas quais gostariam que ela passasse. Daí suas fotos com pernas abertas em tanques de gasolina, daí as menções à tortura que sofreu. Isso sem falar em toda a ordem de comentários de cunho sexual para explicar a “dureza de Dilma”. Comentários que não saíram em revistas, mas que povoaram as salas do Poder no Brasil, as casas de boa família e até os botecos xexelentos com homens gastando o dinheiro do mês da família em cachaça: Dilma é mal-comida.
No final, não importa a idade que as mulheres têm, os espaços diversos que ocupam, as experiências que vivem e todas as várias tarefas que precisam dar conta ao mesmo tempo. A conclusão têm sido sempre a mesma: a trajetória de vida da mulher está diretamente condicionada a ter um homem que lhe queira comer, ou não.
O caso de Dilma é emblemático para ilustrar a violência que as mulheres têm que enfrentar ao exercer o direito de participar da vida política no País nas mais diferentes esferas – vale de comissão de bairro ao Governo Federal. Ataques, ameaças, mentiras, difamações, assassinato. São mais de 1.500 dias e nós ainda não sabemos quem mandou matar Marielle Franco. Quem mandou matar Marielle?
Mas eu preciso acrescentar que esta violência não nasce grande, com acusações de ordem sexual, ataques à honra, menção a violência, morte. Ela começa pequena, quase indecifrável, as vezes até parece gentileza, paciência, disponibilidade, compreensão.
Os espaços políticos e de participação têm garantido privilégios históricos aos homens; boas relações. Foram construídos a partir de suas demandas, necessidades e capacidades. Não é à toa que a militância política é o lugar da entrega total, da falta de horário, do “amor à causa”. Um grau de dedicação, por certo exaustivo, que só pode existir em tal intensidade porque os homens contam com suas companheiras, mães, irmãs, filhas dando conta de todo o trabalho de reprodução social em seus lares.
Esta dinâmica de organização e militância dos espaços políticos, baseada nas necessidades e possibilidades dos homens, é inacessível para a maioria das mulheres uma vez que, além da atuação política, elas precisam dar conta de todas as tarefas de reprodução social. Para aquelas que se atrevem a tentar ocupar os espaços público e privado ao mesmo tempo a “pancada” vem de dois lados: primeiro a própria frustração por não conseguir desenvolver todas as tarefas que lhe são demandadas, pois têm um acúmulo de responsabilidades; depois o julgamento dos companheiros de luta e da família pela “incompetência”, “falta de comprometimento”, “egoísmo” ao não dar conta dos encargos – que diga-se de passagem são infinitos e em grande parte não recaem sobre os homens.
Esta incapacidade de repensar as tarefas de militância para viabilizar a participação das mulheres em um mundo que ainda é patriarcal, machista, misógino e explorador das mulheres mina por completo a nossa capacidade e disponibilidade para ocupar espaços políticos de participação e liderança. Para piorar, além de termos que enfrentar tais condições, somos acusadas de ter pouco interesse e não ocupar os espaços políticos por escolhas individuais. Até aqui estamos falando daquele contexto de expulsão que vem camuflada de “gentileza”, “paciência” e “compreensão”. Quando as mulheres decidem permanecer nos espaços a coisa muda de figura.
Aquelas mulheres que, mesmo contra a maré, decidem participar – ou porque abrem mão das tarefas de reprodução social, ou porque dispõem de uma boa rede de apoio, ou porque se submetem a uma dinâmica de vida exaustiva– têm um longo caminho a percorrer que frequentemente segue a mesma estrada já conhecida por mulheres como Dilma Rousseff, Marielle Franco, Manuella d´Ávila, Isa Pena, Samia Bonfim, e tantas outras.
Não somos ouvidas em nossas opiniões; recebemos explicações minuciosas sobre as questões mais simples e corriqueiras como se tivéssemos dificuldades cognitivas graves; somos reiteradamente interrompidas; vemos nossas ideias serem apropriadas por homens; somos desconsideradas em momentos de discussão e articulação – apesar de sermos requisitadas em mesas para estampar a representatividade. E quanto mais as mulheres se mostram altivas, mas a violência contra elas aumenta. Questionamentos rudes, tratamentos agressivos, apontamentos sobre a vida sexual – é mal-comida ou é comida demais?
Para fechar, é preciso dizer que a compreensão desta desigualdade entre homens e mulheres nos espaços de participação política é um dos muitos temas tratados pelo feminismo, um feminismo de classe que tem a preocupação de pensar o lugar das mulheres enquanto trabalhadoras. Por isso, se nós mulheres somos a maioria da classe trabalhadora, somos fundamentais para o trabalho produtivo e reprodutivo, é importante que a nossa participação, a nossa contribuição, seja viabilizada para a construção de um mundo mais digno para todos.
Me desculpem companheiros, mas não haverá mundo novo com meia dúzia de homens tomando cerveja, coçando a barriga e reclamando que “na minha época era melhor”. Mundo novo, revolução, precisa agregar todo a gente que tem sido explorada e massacrada por esta sociedade que, sim, tem sido construída pelo homem “padrão”, o sujeito que se acha universal. Um mundo novo precisa de mulheres com energia para pensar. Se os companheiros querem fazer alguma coisa importante neste sentido, nos deem lado. Não cabe a vocês ocuparem todos os espaços sempre.
Nesta semana de tantas tarefas não guardei nenhum minuto para responder este texto ou ponderar sobre qualquer colocação que eu fiz. Tenho pensado sobre isso a vida inteira. Aos companheiros, peço apenas que reflitam e aguentem as cruezas da vida como uma mulher.