É inegável, aliás bastante tangível, que a virtualização do processo judicial é uma realidade que não retroagirá. Não há espaço para passos atrás nessa questão. É possível também notar que todos os setores da vida passam por uma transição marco/temporal/histórico relevante no que diz respeito à tecnologia da informação e que, no dizer de Lêda Gonçalves de Freitas, na monografia intitulada Processo de Saúde-Adoecimento no Trabalho dos Professores em Ambiente Virtual “compreende-se que o atual contexto político, econômico e social vivido pelo país e pelo mundo é de transição de paradigma histórico, com a substituição da predominância da sociedade industrial para a sociedade da informação”
Neste contexto, prossegue a pesquisadora “surge a necessidade de um novo tipo de trabalhador, onde as exigências compreendem capacidades intelectuais que lhe permita adaptar-se ao novo tempo por meio do domínio dos códigos e linguagens, incorporando, além da língua portuguesa, a língua estrangeira e os novos enfoques trazidos pela semiótica; o domínio das novas tecnologias da comunicação e informação (TICs)” (FREITAS, 2006)
A revolução tecnológica havida nas últimas décadas do século XX, com o surgimento da “microeletrônica, dos computadores e das telecomunicações” formatou o surgimento de novos espaços de trabalho consubstanciados na união da informação e da comunicação (telemática), que permitiu o processamento e transmissão de informações e o funcionamento dos computadores em rede.
Na justiça brasileira o marco legal para a virtualização do processo surge com a publicação da Lei nº 11.280 em 16 de fevereiro de 2006, que incluiu modificações ao art. 154, parágrafo único do CPC, permitindo aos tribunais a comunicação dos atos judiciais mediante certificação digital. Logo adiante, no mesmo ano, em 19 de dezembro de 2006 a Lei nº 11.419, que dispõe sobre a informatização do processo judicial, prevendo um processo totalmente virtual, por meio da utilização dos recursos tecnológicos e de informática.
As promessas dos marcos legais era a de:
- Racionalização dos procedimentos – abandono de formas arcaica e improdutivas;
- Otimização da prestação jurisdicional e dos serviços judiciários;
- Celeridade processual;
Uma promessa subjacente também era a de que com a virtualização o acesso à justiça seria mais acessível a todos, indistintamente. Mas logo de início se observou o contrário, pois o abismo da desigualdade social no Brasil revelou que as camadas mais vulnerabilizadas não tem acesso a equipamentos de TI’s (tablets, computadores, smartfones, internet) essenciais para o mundo da virtualização do processo judicial. No mesmo rumo a maior parte das defensorias públicas país a fora (que são a porta de entrada dos mais vulnerabilizados ao sistema de justiça) não tem estruturas física e de pessoal capazes de absorver toda a demanda dessa camada da sociedade, diga-se de passagem, que é a maior parte de toda a sociedade brasileira. Não bastasse essa triste realidade, os Tribunais de Justiça país a fora vem promovendo a desinstalação de comarcas do interior ao argumento exclusivamente fiscalista, o que dificulta ainda mais o acesso à justiça. A Justiça para ser Justiça não pode ser precificada, ainda mais, como dito, com a tamanha desigualdade que reina em nosso País.
Com o advento da pandemia da COVID-19, 2020, penso que o processo de virtualização de todo processo judicial foi intensificado à uma ordem extraordinária aqui no Brasil e no mundo. No Brasil a aceleração também se deu por conta da conduta negacionista do Governo Central da época, o que exigiu do Poder Judiciário Brasileiro respostas rápidas no sentido da uniformização das políticas públicas adotadas no combate à pandemia pelos entes da Federação. O teletrabalho, trabalho remoto, home office, como queiram, consolidou-se durante a pandemia ao que parece veio para ficar.
Com o home office veio primeiro a preocupação entre as trabalhadoras e trabalhadores do Judiciário com os custos de novo modo de trabalho: quem arcaria com os custos operacionais? A pergunta que não quer calar até hoje.
Entretanto, estudos em psicologia laboral apontam que quem está em home office acaba misturando a vida pessoal e profissional em jornadas extensas. Apontam que esse modelo de trabalho vem revelando efeitos colaterais relevantes, especialmente sobre o estado emocional das trabalhadoras e trabalhadores. “Jornadas fora de nexo, que chegam a ultrapassar dez horas, sem que se determine exatamente quando começa ou termina o expediente, isso tem sido custoso para os trabalhadores”, afirma Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP. “A exposição permanente aos conflitos entre o público e o privado afeta desde a alimentação até a libido, explica o especialista. O psicanalista explica que redução generalizada da libido não envolve só relações com os parceiros, mas também o prazer de existir.”
A Fenajud por meio da Carta de Aracajú, de 15 de junho de 2022, construída no II Encontro Nacional de Lideranças Sindicais do Judiciário nos Estados, na cidade de Aracaju/SE, tratou da virtualização do processo judicial brasileiro, alertando justamente para os efeitos colaterais e deletérios à saúde da trabalhadora e do trabalhador nessa nova modalidade de trabalho. Na carta estão contidos princípios que devem ser observados na construção do modelo virtual de trabalho, como por exemplo o direito a desconexão e o da construção coletiva.
“Compreender o uso das novas tecnologias e da inteligência artificial é necessário, desde que a lógica seja de fortalecimento e ampliação do acesso à justiça, bem como a proteção do trabalho humano. O uso da IA deve ser precedido de um amplo debate com todos os atores envolvidos no sistema de justiça. Quem estabelecerá os padrões dos algoritmos? Não pode ser fruto de reunião restrita a apenas uma parcela das partes. Outra questão sensível nesta seara, que não pode ser ignorada, está diretamente envolvida com a segurança e armazenamento dos dados de todos os processos.” Afirma o documento.
O processo de virtualização do processo judicial, como dito no inicio, é sem volta, aliás, sem exageros, já está ultrapassada essa discussão. Temos que rumar no sentido de pautar os tribunais na adoção de medidas que mitiguem e/ou compense os efeitos colaterais na vida das trabalhadoras e trabalhadores e ficar de olho na IA (Inteligência Artificial) e no seu uso indiscriminado já presente em várias áreas da vida em sociedade, notadamente no sistema de justiça.
Janivaldo Ribeiro Nunes
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Unirg/Gurupi-TO
Pós-graduado em Administração Pública (Ênfase em Administração do Judiciário)
Escrivão Judicial
Ex-Presidente do Sinsjusto
Coordenador Geral da Fenajud
Vice-Presidente da Aeco-Desor