A LÉSBICA NÃO É UMA MULHER!

No último dia 12 de Junho, Dia das Namoradas e dos Namorados, lançamos um novo número da Revista Cadernos de Gênero e Diversidade. O número trouxe um dossiê sobre Resistências, Teorias e Políticas Lésbicas, coordenado por duas mestrandas, Nathalia Cordeiro (UFBA) e Ana Carla Lemos (UFPE). Nesse dossiê, pesquisadoras e gestoras de políticas públicas refletiram sobre o lugar das lesbianidades em nossa sociedade, bem como avançaram nas reflexões sobre Gênero, esse conceito tão falado nos dias atuais e que tem tido relevância na cena pública brasileira e também em todo o globo.

Esse número nos impactou não apenas teoricamente, mas subjetivamente, na medida em que nos foi cedida por Mônica Benício, viúva da vereadora assassinada Marielle Franco (PSOL/RJ), uma foto afetiva de ambas, em uma viagem que fizeram à Bahia no último ano. No mês conhecido como o do “Orgulho Gay”, qual a importância de refletirmos sobre lesbianidades, de lembrarmos Marielle Franco e de reposicionarmos nossas reflexões sobre gênero e sexualidades a partir da posição lésbica?

Tradicionalmente o Gênero tem sido um conceito compreendido como a forma que cada sociedade produz seus valores em torno do masculino ou feminino. A partir dessa ideia questionamos os comportamentos e práticas sociais que associamos a cada um desses pólos, como o cuidado da casa e dos filhos como uma atribuição feminina – das mulheres – e o provimento do lar e gestão da vida pública da família como uma atribuição masculina – dos homens. O conceito de Sexualidade, nesse sentido, seria acessório ao conceito de Gênero, uma vez que explicaria as dimensões do desejo afetivossexual de cada pessoa, o que ocorreria a partir de um diálogo subjetivo entre Sexo (Macho ou Fêmea), Gênero (Homem ou Mulher) e Sexualidade (Heterossexual, Bissexual ou Homossexual). Essa linearidade, como podemos constatar a partir dos estudos produzidos por lésbicas, é apenas uma ficção analítica, sendo a realidade um pouco mais complexa do que isso.

Uma importante teórica francesa, Monique Wittig, publicou no início dos anos 1990 um artigo polêmico, que causou muito desconforto dentre as mulheres feministas e também em outros circuitos científicos e militantes, argumentando que “a lésbica não é uma mulher”. Para essa autora, que se tornou um clássico de leitura obrigatória para quem pesquisa gênero e sexualidade, a teoria feminista dividiu o mundo em duas classes antagônicas – os homens e as mulheres – e analisou a forma através da qual uma dessas classes – os homens -, dominava a outra – as mulheres. Essa dominação se dava na forma de uma divisão sexual do trabalho, de uma alienação das mulheres em torno da reprodução, de uma educação das meninas preparatória para o cuidado do lar e dos filhos, da veiculação da ideia de que só há felicidade para a mulher que for casada com um homem, dentre tantas outras. Monique Wittig demonstrou que a opressão patriarcal imposta às mulheres, nesses moldes, não era a mesma opressão imposta às lésbicas, o que fazia com que as lésbicas não fizessem parte da classe das mulheres, o que a levou a afirmar que “as lésbicas não são mulheres”.

Essa afirmação de Monique Wittig gerou controvérsias, mas também produziu novas formas de ver e se relacionar com o mundo, não apenas para lésbicas, mas para todas as pessoas que, não cumprindo com as expectativas de gênero impostas pela sociedade, acabavam fugindo dos padrões e, logo, da classe de gênero a que foram atribuídas inicialmente. Assim, após Monique Wittig e a partir de muitas comentadoras, a lésbica deixou de ser mulher, o gay deixou de ser homem e aconteceu o que Sam Bourcier chamou de “multiplicação de gêneros”. O gênero deixou de ser binário – somente homens e mulheres – e se tornou múltiplo! Ao invés de existir apenas homens e mulheres, passamos a enxergar vários gêneros como lésbicas, gays, bichas, sapatões, viados, trans* e muitos outros. O modelo deixou de ser dois sexos – dois gêneros e se tornou N sexos – N gêneros, como bem aponta Sam Bourcier. Isso faz sentido na medida em que, como sabemos, quando um menino faz qualquer coisa que o distancie da masculinidade, como brincar de bonecas, ele escuta “vire homem” e não “vire heterossexual” o que reforça o argumento de Wittig de que a transgressão da heterossexualidade não é uma questão de sexualidade, mas uma questão de gênero.

Nesse mês do orgulho, não mais gay, mas LGBTQI+, provoco todas e todos a refletirem sobre as possibilidades criadas a partir de uma sociedade que não se pense de forma binária, como composta apenas por homens e mulheres. Mas uma sociedade plural, composta por homens, mulheres e tantas outras pessoas e seus gêneros! Essa visão plural da sociedade, mais democrática e que gera menos sofrimento para tantas e tantos de nós, só foi possível por conta do pensamento lésbico, que tanto contribuiu para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todas as pessoas. Por isso é tão importante valorizarmos o pensamento e a criatividade de grupos subalternizados e marginalizados. Daí saem muitas respostas aos problemas do presente.

Capa da revista

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